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História da Companhia Ararense de Leiteria, 1909-1920, Araras, São Paulo, Brasil

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    Fotografia e Nostalgia
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História da Companhia Ararense de Leiteria, 1909-1920, Araras, São Paulo, Brasil

Araras - SP

Fotografia


A-) Resumo:

O leite e seus derivados sempre se constituíram em um dos elementos essenciais na alimentação humana. Um dos desafios na história deste produto consistiu em conservá-lo e fazer um número cada vez maior de sub-produtos a partir da matéria-prima animal. Tal busca fez nascer muitas empresas e empreendedores, tanto no que se refere à pesquisa e inovação de produtos, como no fato de combinar novos fatores de produção e captar investimentos que viabilizassem os empreendimentos. O objetivo do texto é mostrar a trajetória da Companhia Ararense de Leiteria (1909–1920), uma das indústrias que se formaram com tais objetivos, situada em Araras, interior de São Paulo e analisá-la dentro do conturbado contexto de formação das indústrias na Primeira República. Para atingir este objetivo, o artigo resgata a literatura que trata da polêmica da industrialização brasileira a partir do final do império. Em seguida, destaca-se a formação da empresa, através do empreendedor Louiz Nougués e de sua luta para viabilizar o projeto, conquistando a confiança dos cafeicultores para investirem na indústria nascente. A seqüência esclarece como um imigrante colocou em prática os saberes técnicos que trouxe e combinou fatores de produção na fabricação de um produto até então importado, justamente da empresa que viria, em 1920, adquirir o próprio empreendimento, a Nestlé and Anglo-Swiss Condensed Milk Co.

B-) Introdução:

Analisar a indústria brasileira do início do século XX é defrontar-se com a realidade de um setor que ainda era incipiente no país. Na época a economia nacional baseava-se na produção e exportação de café. Esse produto, cultivado principalmente em São Paulo, possibilitou a ascensão econômica e política daqueles que o cultivavam, mantendo-os no poder político nos primeiros 40 anos de República. Mas o café também fomentou outras formas de atividade econômica, com destaque para os serviços públicos em geral e, sobretudo, a indústria, maior beneficiada com investimentos originários dos lucros com as exportações cafeeiras. A indústria do período, concentrada na produção de bens não duráveis, foi se fortalecendo na medida em que empregava boa parte dos imigrantes que chegavam e, ao mesmo tempo, começava a suprir o incipiente mercado interno.

Como a produção de café estava situada no interior paulista, onde também se intensificaram os investimentos em infra-estrutura (entre eles, as ferrovias, com destaque para a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, a “Paulista”) para dar conta do escoamento desta produção, tais condições permitiram o florescimento industrial em todo o Estado, inclusive no seu interior, e não apenas na capital, como é o caso da empresa em discussão.

A Companhia Ararense de Leiteria, a “Leiteria”, fundada em 1909, no município de Araras (aproximadamente 170 quilômetros da capital), é uma destas empresas. A fábrica passou a produzir um produto até então importado, o leite condensado, que a Nestlé vendia no mercado brasileiro sob o nome de Milkmaid. A multinacional suíça, ao resolver instalar sua primeira filial no Brasil, em 1921, escolheu justamente o município de Araras. O motivo é óbvio, uma vez que era ali que funcionava a única empresa com instalações industriais capazes de despertar o interesse da empresa estrangeira.

Desta forma, o texto tem como objetivo analisar a história da Companhia Ararense de Leiteria em seu curto período de existência, que vai de 1909 até 1920. Para tanto, além desta introdução, está dividido em outras três partes. Na primeira, trata da fundação da empresa no contexto da polêmica da industrialização na Velha República. A segunda parte destina-se a analisar a relação entre Louiz Nougués e a implantação de seu sonho, que dá origem à firma. Na terceira o assunto em questão passa a ser o crescimento e expansão da Leiteria, entre seu início até o começo dos anos 1920. A parte que vem em seguida refere-se à venda da empresa e à chegada da Nestlé, em 1921. Por fim, são apresentadas as conclusões, buscando relacionar a história da Leiteria no contexto da industrialização de nossa Primeira República e a discussão que esta originou entre economistas e demais cientistas sociais preocupados em explicar a industrialização incipiente do período.

C-) A Leiteria frente à polêmica da industrialização:

Antes de adentrar naquilo que há de específico na história da Companhia Ararense de Leiteria, é necessário posicioná-la no contexto do debate que ocorreu sobre a indústria brasileira em seus primórdios. Claro que é difícil falar de um processo de industrialização, antes de 1930, no Brasil. O principal motivo é que nosso crescimento econômico era induzido pelas exportações – junção de uma pequena atividade industrial e de uma agricultura de subsistência incapazes de dinamizar a atividade interna – que visava atender à demanda externa por produtos primários, o que tornava nossa economia dependente. Porém, o fato é que existiram indústrias no Brasil no início do século XX, dentre as quais queremos destacar a Leiteria e o contexto em que surgiram e se desenvolveram as pequenas indústrias que atendiam sobretudo um mercado local.

Durante a Primeira República, mas não somente neste período, a economia brasileira apoiou-se na exportação do café, cultura que apesar de conviver com crises internacionais e fortes alterações nos preços, fez crescer os setores que estavam envolvidos nesta atividade – como o ferroviário, o de seguros e o portuário. O café que, segundo Caio Prado Júnior, no conjunto dos produtos exportados à época, tinha “[...] o primeiro e soberano lugar [...]”, não era a única cultura que o Brasil enviava ao mercado externo – havia também a borracha no norte, o açúcar no nordeste, por exemplo, no entanto, apesar dos demais produtos, era o café que articulava o Brasil à dinâmica capitalista mundial, pois nossa economia “[...]” sempre cresceu para dentro e ao mesmo tempo esteve inserida de forma periférica e dependente na ordem econômica internacional.

A despeito das subidas e descidas do preço internacional do café, nasceram indústrias, principalmente as de bens de consumo não-duráveis, como a indústria alimentícia, o que causou grande polêmica quanto ao seu entendimento.

O problema está em compreender os efeitos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) sobre a industrialização: teriam sido positivos ou negativos? Dessa questão vem a “Teoria dos Choques Adversos” e a tese da “industrialização induzida pelas exportações” – polêmica que esteve em evidência nos anos 1970.

Os que defendem a “Teoria dos Choques Adversos” afirmam que a Primeira Guerra impulsionou e, foi primordial, à indústria nacional de transformação, pois, apoiou a primeira onda de industrialização através da substituição de importações. Um dos que concordam com esta idéia é Fishlow ao afirmar que o processo de substituição de importações que o conflito possibilitou teve grande relevância devido aos saltos nos indicadores da demanda, apesar de não ter havido uma seqüência em relação à capacidade de produção, que não teve grandes aumentos.

Contudo, os lucros criados por este processo incentivaram novos investimentos. Fishlow cita o caso dos produtos têxteis para ilustrar o crescimento da produção no período da Primeira Guerra. Em 1918, a produção de tecidos superou a de 1914 em 57%, isto devido, principalmente à substituição de importações, que fez com que a produção interna de tecidos consumidos no mercado nacional aumentasse de menos de dois terços para 85% ao final do conflito. Por fim, o choque exógeno que a guerra causou foi de grande importância ao possibilitar que a capacidade industrial já instalada levasse à frente o processo de industrialização brasileira, através da substituição de produtos importados que, antes de 1914, competiam com as manufaturas nacionais pelo nosso mercado.

Outro que seguiu este pensamento foi Baer, quando disse que “os surtos de industrialização que se manifestaram nas primeiras décadas do século XX tiveram por motivo principal choques oriundos do setor externo”, como foi o caso da Primeira Guerra. A indústria anterior à guerra aumentou sua produção devido a um maior protecionismo, através das tarifas aduaneiras, das facilidades para a compra de máquinas, instrumentos e matérias-primas, possibilitadas pela Caixa de Conversão, à mão-de-obra imigrante que não encontrava emprego nas lavouras cafeeiras e ao aumento do número de usinas elétricas e ferrovias. Porém, todos esses fatores têm suas dimensões reduzidas quando comparados ao estímulo que a guerra proporcionou à indústria brasileira. O conflito gerou uma carência de produtos importados, o que atraiu o interesse para a criação de novas indústrias que preenchessem esta lacuna no mercado brasileiro, possibilitando a criação de 5.936 novas indústrias e o aumento do valor da produção de alimentos (alimentos bebida e fumo), cuja participação na produção industrial era de 26,7% em 1907 e alcançou a marca de 40,6% em 1920.

Porém a estrutura econômica do Brasil pouco mudou com este surto industrial. A maioria das indústrias que surgiram no período da guerra eram pequenas e, na indústria pesada, a importação de máquinas e peças ainda era necessária às atividades industriais. Além disso com o fim da guerra e a recuperação da produção industrial na Europa, aliada aos produtos norteamericanos, ficou nítida a pouca competitividade dos produtos brasileiros em relação aos concorrentes estrangeiros – os bens nacionais eram caros e de menor qualidade. Assim, na década de 1920, muitas das indústrias nacionais que foram instaladas durante a guerra passaram a ter grandes dificuldades, retrocedendo na maioria das vezes.

Contrária a esta idéia é a análise que Dean faz sobre os efeitos da Primeira Guerra na industrialização. Atrelando a industrialização à exportação e aos lucros gerados pelo café, Dean afirma que é “evidente que o crescimento continuado da indústria paulista resultou do crescimento do comércio do café”. Esta indústria expandiu-se, entre 1889 e 1913, apoiada na fácil obtenção de crédito bancário, na expansão geográfica do mercado paulista, tornando-se independente do Rio de Janeiro e atraindo os importadores cariocas, na construção de ferrovias, nas isenções fiscais para a importação de maquinaria e em outras medidas, como plano de Valorização do Café, em 1906, que fez os preços do produto subirem novamente, o que possibilitou também uma melhora no comércio e na indústria, com os empresários paulistas comprando máquinas e expandindo as fábricas. Com o advento da Primeira Guerra, as indústrias passaram a ser prejudicadas com as dificuldades em importar seus bens de capital e matérias-primas. Apesar disso, houve um crescimento da produção industrial paulista, baseado fortemente no parque industrial que existia antes da guerra – 721 firmas paulistas fundadas antes de 1905 ainda existiam em 1920. Baseando o crescimento da produção numa capacidade já instalada, que atendia ao crescente mercado consumidor de São Paulo – proporcionado pelas exportações de café – Dean afirma que “[...] a Primeira Guerra não foi, por si mesma, particularmente estimulante para a indústria paulista”.

Quem também questionou os benefícios da Primeira Guerra Mundial à indústria brasileira foram Villela e Suzigan, apesar de não atrelarem totalmente o crescimento industrial ao setor cafeeiro. A Guerra fez com que os países aliados envolvidos nela passassem a importar uma quantidade maior de gêneros alimentícios essenciais. Deste modo, as exportações brasileiras de açúcar, carnes, banana e tecidos de algodão aumentaram entre 1914-18. Por outro lado, as importações de bens de capital, matérias-primas e combustíveis tiveram uma drástica redução durante o mesmo período – fato que inviabilizou a única fonte de suprimento de maquinaria industrial e impediu a expansão na capacidade produtiva – além do declínio no consumo aparente de aço e cimento, indicadores da formação de capital na indústria.

Estes fatores mostram que é difícil acreditar num surto industrial ocorrido durante a Primeira Guerra; tal surto parece ter existido entre 1905-1912, quando os mesmos indicadores demonstram um forte crescimento, que foi bloqueado pelo conflito. Na realidade o que aconteceu foi um crescimento da produção industrial baseado na melhor utilização da capacidade produtiva já instalada, e, por isso Villela e Suzigan perguntam ao final, “[...] talvez o correto seja indagar se o surto industrial que parece ter ocorrido nos anos 1905-1912 não teria levado a um processo de industrialização na ausência da Guerra de 1914-1918”.

Ambas as explicações, “Teoria dos Choques Adversos” e “Industrialização induzida pelas Exportações”, não conseguiam apreender em sua totalidade o crescimento industrial brasileiro do início do século XX. Flávio e Maria Teresa Versiani exemplificam este dilema em sua análise sobre a evolução da indústria têxtil brasileira, quando mostram que a crise externa, ao derrubar o câmbio, estimulava a produção industrial e reduzia o investimento. Já a expansão das exportações, por outro lado, ao subir o câmbio impulsionava o investimento, mas cerceava o aumento das exportações através do declínio nos preços dos importados, resultando em uma ambigüidade entre exportações e indústria, assim resumida: [...] o início da industrialização surge como resultado dos estímulos produzidos pela conjugação de períodos de dificuldades no setor externo com períodos em que a economia voltou-se mais para o exterior. De um lado, evidencia-se o fato de que “os choques adversos” não teriam tido o impacto que tiveram na ausência de fases anteriores de formação de capacidade produtiva. De outro lado, a interpretação da industrialização como um resultado direto da expansão das exportações aparece como notoriamente insuficiente e simplista.

A história da Companhia Ararense de Leiteria evidencia tal impasse nas explicações, pois fica difícil caracterizá-la somente em uma das visões da indústria brasileira do início do século XX.

Esta firma, como será evidenciada em seguida, nasce na onda do crescimento industrial anterior à Primeira Guerra Mundial, em 1909, ligando-se aos elevados índices de exportação cafeeira. Mas nota-se, também, uma expansão de suas atividades e de seu capital no período da Guerra, o que mostra que o conflito lhe foi benéfico. Mais interessante para elucidar a formação e o desenvolvimento da Leiteria são as interpretações da gênese da indústria brasileira que fundam suas origens no desenvolvimento capitalista da economia cafeeira, tratando imigração européia, trabalho assalariado, formação de mercado de trabalho, constituição da burguesia cafeeira e sua predominância mercantil como características do desenvolvimento capitalista no Brasil. Um dos autores que analisa a relação entre café e indústria é João Manuel Cardoso de Mello em seu clássico O Capitalismo Tardio. Em sua obra fica claro que a economia cafeeira fomentou o nascimento do capital industrial, com o deslocamento de recursos, porém, mostra que há uma relação que se torna contraditória entre o café e a indústria. Além disso, indica a importância dos fatores externos como os determinantes em última instância do movimento da economia brasileira no início do século XX, ao dizer que “A posição subordinada da economia brasileira na economia mundial capitalista está duplamente determinada: pelo lado da realização do capital cafeeiro e pelo lado da acumulação do capital industrial”.

Apoiado na relação café-indústria – sócios da Leiteria eram fazendeiros de café – o estudo desta firma vai apresentar este e outros traços que se coadunam com a análise de João Manuel Cardoso de Mello. Passemos agora à abordagem de tal firma para neste contexto de discussão.

D-) Louiz Nougués implanta sua idéia, dando origem à Leiteria:


Tratar da história da Companhia Ararense de Leiteria é, ao mesmo tempo, percorrer a

trajetória de vida do francês Louiz Nougués. Este nasceu na França, em 1878, formou-se na

Sorbonne e, com conhecimentos em química e agronomia, além de ter recebido uma bolsa de

estudos, veio para Araras a fim de trabalhar na Escola de Trabalhadores Rurais, em 1908.

Entendendo, como afirma Schumpeter (1982:54), que “chamamos ‘empreendimentos’ à

realização de combinações novas; [e] chamamos ‘empresários’ aos indivíduos cuja função é realizálas”,

Nougués encaixa-se perfeitamente no papel do empresário schumpeteriano. O francês que

sempre gostou de novidades científicas, conheceu na Europa uma técnica inovadora que permitia a

conservação do leite através de sua condensação. Esta tecnologia já estava disponível nos Estados

Unidos desde meados do século XIX e, na Suíça, tinha sido implantada pelos pesquisadores Henri

Nestlé e George Page (Matthiensen, 2003:106-7). O fato de Nougués não ser o inventor da idéia não

deve diminuir sua importância, pois:

A liderança econômica em particular deve, pois, ser distinguida da ‘invenção’. Enquanto não forem levadas à

prática, as invenções são economicamente irrelevantes. E levar a efeito qualquer melhoramento é uma tarefa

inteiramente diferente da sua invenção e uma tarefa, ademais, que requer tipos de aptidão inteiramente

diferentes. Embora os empresários possam naturalmente ser inventores exatamente como podem ser

capitalistas, não são inventores pela natureza de sua função, mas por coincidência e vice-versa. Além disso, as

inovações, cuja realização é a função dos empresários, não precisam ser invenções.

Após conhecer a técnica, Nougués passou a analisar a viabilidade de implantá-la em seu

novo lugar de moradia, o município de Araras, que não possuía nem 20 mil habitantes. Neste

momento foram primordiais algumas características que, segundo Schumpeter, diferenciam a

atuação do empresário, como intuição, liderança, desejo de conquista, autoridade, iniciativa e

previsão. Estes atributos o ajudaram a vencer os obstáculos financeiros para a implantação da

Leiteria.

De um lado, Nougués era estimulado em sua iniciativa pelo fato de Araras ter algumas

vantagens: boa produção de leite nas fazendas do município e da região (Leme, Conchal, Mogi-

Guaçu), proximidade da capital do Estado (Araras fica a 170 quilômetros de São Paulo) e o fato do

município pertencer à malha ferroviária da Paulista desde 1877, o que facilitava a chegada da matéria-prima – lembrando que o leite vinha de pequenas fazendas da cidade e da região,

comprovado pelo grande número de paradas do trem, muitas das quais tinham no café sua principal

atividade – e o escoamento da produção (Matos, 1974:66-7). Por outro, o problema estava na

obtenção do capital necessário à implantação da indústria o que, segundo Penrose, deveria ser

solucionado pela astúcia do empresário:

La afirmación de que ‘la escasez de capital’ es causa de la quiebra de las empresas pequeñas, solo indica que

se requiere un tipo muy particular de habilidad empresarial para poner en marcha una nueva empresa o para

mantener el ritmo de inversiones necessarias hasta que la empresa alcanza una situación y un tamaño tales que

haga posible obtener facilmente nuevos créditos (Penrose, 1962:44).

O desafio de Nougués estava em vencer a resistência dos “capitalistas”, entendidos como

“[...] proprietários de dinheiro, de direito ao dinheiro, ou de bens materiais” (Schumpeter, 1982:

54), em financiar esta novidade. Era necessário inspirar confiança aos mesmos sobre a viabilidade

deste empreendimento industrial. Keynes resume bem esta “aposta”:

Em outros tempos, quando as empresas pertenciam, quase todas, aos que as tinham fundado ou aos seus

amigos e sócios, o investimento dependia de um número suficiente de indivíduos de temperamento

entusiástico e de impulsos construtivos que empreendessem negócios como uma maneira de viver, sem

realmente tomar como base os cálculos precisos de lucros prováveis. Os negócios eram, em parte, uma loteria,

embora o resultado final fosse, predominantemente, determinado pelo fato de serem as aptidões e o

temperamento dos dirigentes superiores ou inferiores à média. Uns fracassariam, outros seriam bem sucedidos

(Keynes, 1982:125).

Para entender como Nougués convenceu os “capitalistas” em questão, neste caso, os

fazendeiros de café, deve-se olhar para a economia brasileira à época. No início do século XX a

exportação de café era o motor de nossa economia. Este capital foi se “metamorfoseando” em

capital industrial, ao concentrar grande montante de liquidez nas mãos dos fazendeiros, ao passar do

escravismo ao trabalho assalariado – transformando a força de trabalho em mercadoria – e assim,

criando um mercado consumidor (Mello, 1998:105). Esta “passagem” não deve ser associada, no

entanto, exclusivamente à uma crise no complexo exportador cafeeiro.

Superficialmente, o capital cafeeiro, que era dominantemente mercantil e ligado aos

interesses dos grandes mercadores internacionais pelo lado da realização, teve como razões para

invadir a indústria: uma boa taxa de rentabilidade esperada, condições favoráveis de financiamento

vindas da política econômica do Estado – como a reforma da Lei de Sociedades Anônimas – e uma

disponibilidade de mão-de-obra proveniente da grande imigração às lavouras cafeeiras. Mas,

estruturalmente, é necessário atentar ao grande acúmulo de liquidez que não podia ser empregado a

todo o momento na compra de terras; aos custos da produção cafeeira: depreciação do capital fixo,

custos comercial-financeiros, custos de transportes e impostos e, sobretudo, o pagamento de salários

e sua subordinação aos preços internacionais através da importação de alimentos e bens de consumo assalariados. Além disso, é preciso mencionar os custos de manutenção de mão-de-obra empregada

nas indústrias nascentes que eram, pelos mesmos motivos, condicionados à importação. Era

interessante aos manipuladores do capital cafeeiro diminuir os seus custos e sua dependência do

mercado externo, por isso, o investimento na indústria tornava-se interessante ao atender estas duas

reivindicações. Ademais, os cafeicultores, ao diversificarem seu capital nas atividades industriais,

podiam lucrar na forma desta associação, pois, como no caso da Leiteria, uma parte do leite que a

fábrica utilizava vinha da fazenda de um dos acionistas, a Baronesa de Arary – proprietária da

fazenda Montevidéo. Tudo isto, aliado a uma expansão da agricultura de alimentos, pois:

A própria expansão da agricultura de alimentos, por sua vez, estimula a acumulação industrial e o investimento

público, ao suprir abundantemente este componente dos salários, não exercendo qualquer pressão no sentido

de elevar o custo da reprodução da força de trabalho urbana; reversamente, o setor industrial estimula o

investimento público e a agricultura de alimentos ao prover wage goods industriais a preços quase constantes.

Quer dizer, devido ao abundante suprimento de força de trabalho, conjugado ao crescimento harmônico da

agricultura de alimentos e do setor industrial, não houve qualquer pressão para a subida tanto dos salários

monetários quanto dos salários reais, uma vez que o nível de renda de preços manteve-se praticamente

constante entre 1903 e 1905, e subiu em 1906 para se estabilizar daí por diante (Mello, 1998:162).

Neste quadro vale ressaltar que a indústria que o capital cafeeiro escolheu para adentrar foi a

de bens de consumo assalariado, como a de alimentos e não a de bens de produção. Esta última

havia acabado de passar pela “Segunda Revolução Industrial”, caso da siderurgia, o que implicava

“[...] uma profunda mudança tecnológica que aponta para gigantescas economias de escala e,

portanto, para um grande aumento das dimensões da planta mínima e do investimento inicial”

(Mello, 1998:109). Para dar conta desta nova modalidade era necessário grande mobilização e

concentração de capitais, porém nada compensadores quando comparados aos riscos do

investimento numa economia frágil como a brasileira, além do difícil acesso a tal tecnologia.

Porém, tais empecilhos não atrapalhavam a indústria de bens de consumo corrente, onde a

tecnologia simples não necessitava de grandes conhecimentos para o uso, e era facilmente

encontrada no mercado internacional. Por fim, o tamanho do estabelecimento e o montante do

investimento inicial eram compatíveis à realidade brasileira (Mello, 1998:109).

Desta forma, associaram-se ao empreendimento de Nougués os fazendeiros José de Souza

Queiroz, proprietário da fazenda Cresciumal, e João de Lacerda Soares, filho de João Soares do

Amaral, proprietário das fazendas Palmeiras e Santa Maria que, em 1913, foram avaliadas em Rs.

941.241$000 (novecentos e quarenta e um contos e duzentos e quarenta e cinco mil réis)8. Assim,

em uma assembléia na casa de Nougués, no dia 31 de novembro de 1908, surgia a Companhia

Ararense de Leiteria. Na prática, só passou a funcionar após a autorização, que veio com o decreto

presidencial nº 7279 de 7 de janeiro de 1909. Na mesma assembléia foram eleitos para os respectivos cargos na indústria: José de Souza Queiroz para a presidência, João de Lacerda Soares

como diretor comercial e Louiz Nougués como diretor técnico. Além deles, formavam o conselho

fiscal: o Barão de Tatuí, Visconde de Nova Granada e Arthur de Moraes Jambeiro Costa. A

Leiteria, de razão social Lacerda, Soares & Nougués, cujo capital inicial era de Rs. 66:800$000

(sessenta e seis contos e oitocentos mil réis) em ações de Rs.200$000 (duzentos mil réis), tinha

como objetivo:

[...] Adquirir o leite na zona circunvizinha e, depois de o fazer passar por operações de uma technica especial

de accordo com os processos mais recentes neste gênero de indústria, vendel-o directamente aos consumidores

em São Paulo. (Companhia..., 1908:1).

4 Crescimento e expansão da Leiteria (1909–1918)

Não há como negar que a Companhia Ararense de Leiteria cresceu vertiginosamente entre

1909 e 1918. Tal período foi marcado pela Primeira Guerra Mundial, o que terá um peso na análise

da expansão da Leiteria. Em termos bélicos, sua repercussão no Brasil foi diminuta, devido à

pequena participação do país que se restringiu à entrega de navios alemães aos aliados, mais

especificamente aos franceses, somada ao envio de uma divisão naval, de um grupo de dez

aviadores navais e uma missão médica militar (Vinhosa, 1984:165). Já no que diz respeito à

economia a discussão é grande, como visto, em torno da repercussão do conflito (sobretudo nas

temáticas de “Teoria dos Choques Adversos” e “Industrialização por Substituição de Importações”).

Para a finalidade deste texto, a Guerra é algo que deve ser analisado dentro do contexto da história

da Leiteria, assim como o que aconteceu a esta indústria, tanto antes quanto depois do conflito.

A análise deve começar por definir a empresa em questão como “[...] tanto una organización

administrativa como un conjunto de recursos productivos. Tiene como fin organizar el empleo de

los recursos ‘propios’ y adquiridos con objectivo de producir y vender ciertos bienes y servicios y

obtener un beneficio [...]” (Penrose, 1962:36). Como tal é na indústria leiteira que irá batalhar por

seu espaço, principalmente através da produção do leite condensado. Porém isto gerava um

problema, pois teria que concorrer com uma empresa, cujas notícias de presença no mercado

brasileiro datam de 28 de outubro de 18769, com um anúncio de Farinha Láctea. Empresa que já

havia passado pelo processo de departamentalização e centralização – à integração horizontal

seguiu-se a vertical – onde as funções mais importantes, como fabricação, vendas e finanças, eram

gerenciadas pelos diretores ou gerentes, sendo estes subordinados ao presidente (Chandler, 1998:48-9). Tal corporação era a multinacional10 suíça Nestlé and Anglo-Swiss Condensed Milk

Co. que, além de farinha láctea, colocava no mercado brasileiro o seu leite condensado, o Milkmaid.

Apesar de toda força da multinacional suíça, é possível que a demanda do mercado

brasileiro por leite condensado, lembrando que ele não serve apenas para rechear o bolo, sendo uma

boa maneira de conservar o laticínio por mais tempo, tenha aumentado consideravelmente na

década de 1910, o que pode ser corroborado pela diminuição nos bens de consumo importados

como um todo – mesmo que os índices dos produtos alimentícios não tenham caído tanto.

Este é corroborado pela idéia de “interstícios” de Penrose, que trata das oportunidades

abertas nos mercados à entrada de novas firmas:

Si el crescimiento de la economia en general va acompañado de la geración de nuevas industrias y campos

tecnológicos no dominados por grandes empresas, será posible que otras nuevas ingresen en dichas industrias

obteniendo aquellas mejor dotadas y de más pronto establecimiento una posición dominante. En los primeros

momentos de un desarrollo industrial rápido, los insterstícios pueden ser muy amplios y numerosos, debido a

que las empresas establecidas son escasas y a que hay muchas nuevas industrias nacientes. (Penrose, 1962:

242).

O crescimento da Leiteria, baseado nas brechas deixadas pela Nestlé no mercado leiteiro,

que aumentaram com a Primeira Guerra Mundial, poderia ter sido bloqueado pela dificuldade desta

nova firma em obter capital para sua expansão, pois as oportunidades de novos investimentos

ligavam-se ao acesso às bases tecnológicas, ao comportamento da direção da empresa e,

principalmente, ao volume de capital envolvido (Guimarães, 1987:108). Quanto ao último item, era

necessário dar motivos para outros capitalistas investirem na Leiteria. Era importante transmitir a

idéia de que ao investir nesta empresa, o aumento nos lucros se traduziriam em benefícios àqueles

que nela colocassem seu dinheiro. E uma forma para a empresa conseguir tais fundos era o

pagamento de dividendos aos acionistas – a Leiteria, desde seu início, constituiu-se em uma

sociedade por ações – os quais serviam para “[...] mantener la reputación de la empresa y en

particular, su atractivo frente a los inversionistas como fuente de fondos futuros [...]” (Penrose,

1962:31).

Desta forma, atraindo cada vez mais investidores para se tornarem acionistas – por exemplo,

em 1917, a Leiteria pagou Rs. 20$000 (vinte mil réis) por ação referente ao ano de 191611 – a

indústria ararense cresceu robustamente. Se, em 1909, a empresa nascia com um capital de

Rs.66:800$000 (sessenta e seis contos e oitocentos mil réis), já em 191512, realizou-se uma

assembléia (noticiada também pelo jornal O Estado de São Paulo) que determinava o aumento de

capital da Leiteria para Rs. 350:000$000 (trezentos e cinqüenta contos de réis), divididos em ações

de Rs. 200$000 (duzentos mil réis) cada uma, valor que em nova assembléia no ano de 191713, foi

elevado a Rs. 450:000$000 (quatrocentos e cinqüenta contos de réis), em ações de Rs. 200$000 (duzentos mil réis). Para se ter uma idéia, a Companhia Araras Industrial, no ano de 191514,

empresa coureira e contemporânea à Leiteria e que tinha como um dos sócios André Ulson Júnior, o

Prefeito de Araras em 1916, tinha um ativo da ordem de Rs. 55:353$029 (cinqüenta e cinco contos,

trezentos e cinqüenta e três mil e vinte e nove réis). Outro parâmetro, que nos dá uma noção do

poderio econômico da Leiteria é o Balancete Geral da Receita e Despesa do município de Araras15,

onde situava-se sua fábrica, referente ao ano financeiro de 1915. Nele consta que o valor da receita

foi Rs.136:127$181 ( cento e trinta e seis contos, cento e vinte e sete mil e cento e oitenta e um

réis), no mesmo ano, a Leiteria aumentara seu capital para um valor maior que o dobro da receita

ararense. Ainda quanto à receita do município, nota-se que o valor do imposto pago pela Leiteria

em 1910, pela lei nº 25 do mesmo ano16, e em 191217, Rs.120$000 (cento e vinte mil réis), era quase

a metade do que pagava a Baronesa de Arary, Rs. 245$000 (duzentos e quarenta e cinco mil réis),

que era proprietária da fazenda Montevidéo, uma das fornecedoras de leite e também acionista da

Leiteria.

A Companhia Ararense de Leiteria tornou-se um investimento atrativo aos detentores de

capital. Este fato fica exposto na quantidade e na qualidade de seus novos acionistas, muitos deles

apesar de serem ararenses, residentes na cidade de São Paulo, como é o caso do fazendeiro João

Soares do Amaral, que era pai de um dos fundadores da empresa, João de Lacerda Soares. Citar

todos os que tiveram uma porcentagem na empresa seria muito extenso, portanto, nos ateremos a

alguns nomes, baseando-nos no ano de 1917, quando a Leiteria aumentou seu capital e fez uma

revisão de seus estatutos. Na assembléia ocorrida na sede da indústria em Araras, no dia 6 de

novembro de 1917, compareceram os seguintes acionistas: Manoel Monteiro de Araripe Sucupira

(20 ações), à época presidente da Leiteria; Percílio de Carvalho (18 ações); Maria Luiza de Queiroz

(76 ações); Francisco Xavier Paes de Barros (12 ações), Baronesa de Arary (25 açoes); Mário

Lacerda Soares (18 ações), fazendeiro, membro do conselho fiscal da indústria e irmão de João de

Lacerda Soares; Pedro Queiroz Lacerda (1 ação), também membro do conselho fiscal; além

daqueles que ordenavam a Leiteria, como João de Lacerda Soares (1.054 ações), que era o segundo

secretário; João Soares do Amaral (120 ações) que, além de fazendeiro e pai de João e Mário

Lacerda Soares, era Coronel da Guarda Nacional em Araras18; José Francisco de Queiroz Telles (18

ações), proprietário da fazenda Sant’Anna; e o idealizador Louiz Nougués (500 ações). Esta divisão

dos proprietários e de suas ações era importante, pois, no artigo 13 do Estatuto da Leiteria de 1917,

constava que cada ação tinha direito a 1 (um) voto nas assembléias, o que demonstrava que o poder de decisão concentrava-se nas mãos dos fundadores, João de Lacerda Soares, incluindo seu pai e

irmão e, Louiz Nougués, fato que poderá explicar os acontecimentos posteriores da Leiteria.

5 Venda da Leiteria e Chegada da Nestlé (1921)

Ao analisar a trajetória da Companhia Ararense de Leiteria entre seus pouco mais de dez

anos de atividade fica difícil entender o que moveu seus controladores à operação de venda da

empresa à multinacional suíça do ramo leiteiro, Nestlé and Anglo-Swiss Condensed Milk Co., em

1920. A resposta pode estar nos interesses pessoais dos acionistas e o que cada um deles desejava

ao se tornarem sócios da Leiteria.

Quase todos os acionistas tinham negócios paralelos à Leiteria, inclusive Nougués19, o que

indica que não se dedicavam integralmente aos interesses desta. Além disto a empresa, apesar do

montante de capital acumulado, tinha um caráter familiar, o que fica nítido com os laços de

parentesco entre, por exemplo, dois de seus maiores acionistas, João Soares do Amaral e João

Lacerda Soares, respectivamente pai e filho. Esta idéia do parentesco deve unir-se à concepção de

que muitos acionistas, por exemplo, Nougués, juntaram uma quantia de dinheiro em suas mãos que

lhes permitiria viver tranqüilamente e conduzir seus outros negócios, pois:

Hay excelentes hombres de negocios que pueden tener una escala de valores personal de acuerdo con la cual

una renta mayor de aquella que es necessaria para conferirle una situación confortable en la comunidad, no

posee el suficiente atractivo para dedicarle más tiempo y esfuerzos (Penrose, 1961:40).

Existem vários atributos citados que valorizam a função do empresário, tais como ambição,

versatilidade, previsão. Porém, a falta dos mesmos pode tornar-se um empecilho ao crescimento da

empresa. Assim, a falta de ambição, que pode ter advindo da boa condição financeira que gozavam

na época da venda os acionistas da Leiteria, “[...] es la restricción más importante [...]” (Penrose,

1962:40). É necessário notar também que a oferta feita pela Nestlé para comprar a indústria foi bem

sedutora e, com certeza, vinha ao encontro dos objetivos daqueles que investiam na empresa

ararense, uma vez que, as incertezas do mercado quanto ao futuro dos negócios faziam de cada

investimento uma “aposta”. Assim:

[...] mesmo não sendo compelida a retirar-se da indústria, uma firma pode mostrar-se disposta a abandoná-la

quando a taxa de lucro, embora positiva, cair abaixo de determinado nível, se achar um comprador para seus ativos fixos vinculados a essa indústria. Essa transferência de ativos pode corresponder à aquisição da firma

como um todo ou meramente à compra da quase firma não-lucrativa. (Guimarães, 1987:30).

Tais fatores – proposta de venda tentadora, falta de ambição, boa condição de vida já

alcançada e incertezas – impeliram a Companhia Ararense de Leiteria em seu processo de venda à

Nestlé, já que, “a una empresa muy próspera puede resultarle más lucrativo fundirse con otra

empresa, perdiendo así su identidad, que no continuar independientemente”(Penrose, 1961:26). A

data oficial do fechamento do negócio entre a Companhia Ararense de Leiteria e a multinacional

suíça é 22 de janeiro de 1921, porém, pode-se considerar que a “vida útil” da Leiteria tenha se

extinguido no ano anterior.

Outra controvérsia girou em torno do valor que a Nestlé pagou pela Leiteria. Na escritura

consta que foram pagos Rs.800:000$000 (oitocentos contos de réis), versão que, na cidade de

Araras, é contestada, pois afirmava-se que haviam sido pagos Rs.1.200:000$000 (mil e duzentos

contos de réis)20.

A Nestlé, desta forma, instalava-se definitivamente em um mercado onde já era conhecida,

mas, principalmente, fugia das agruras que o pós-guerra havia deixado na Europa, onde os sistemas

monetários estavam desorganizados, houve forte queda do poder aquisitivo das pessoas, os

embargos, as novas tarifas e as animosidades criadas pela Primeira Guerra Mundial atrapalhavam a

ação comercial das grandes indústrias (Hobson, 1983:338). Além disto, dizer quais eram as

estratégias da Nestlé, e das outras multinacionais, ao investir no Brasil é simples:

[...] 1) O processamento de matérias-primas locais com vistas à exportação do produto final [...] 2) A obtenção

da primazia no abastecimento dos mercados locais, mediante a antecipação à entrada dos concorrentes ou o

afastamento dos mesmos da competição interna [...] 3) A substituição parcial das importações de produtos

industrializados [...] e 4) O aumento da participação no abastecimento do mercado interno através da produção

local de bens anteriormente importados, baseada na disponibilidade de matérias-primas a baixo custo e na

existência de uma demanda interna compatível com a obtenção de certas escalas mínimas de produção [...]

(Suzigan; Szmrecsányi, 2002:236).

A negociação da Lacerda, Soares & Nougués, razão social da Companhia Ararense de

Leiteria, com a Nestlé and Anglo-Swiss Condensed Milk Co. foi selada entre os representantes de

cada empresa: João de Lacerda Soares e Louiz Nougués, os maiores acionistas, em nome da

indústria ararense e, pelo lado da multinacional suíça, Edouard Dutilh. Assim, a Nestlé adquiria

uma indústria forte que havia lucrado muito com o leite condensado “[...] os lucros espantosos que

tem auferido desde a Guerra, o aumento do custo de cada caixa de leite condensado, que era a

princípio de Rs. 33$000 e actualmente [1921] de Rs. 75$000 [...]” (Desfazendo..., 1921:1); pagava

um imposto, até certo ponto, baixo em relação às outras indústrias do município, da ordem de

Rs.1:220$000 (um conto e duzentos e vinte mil reais). Situada a 170 quilômetros da capital do Estado, tinha facilidades para obtenção da matéria-prima e escoagem da produção, pelo fato de

fazer parte da malha ferroviária da Paulista. Outro atrativo para os compradores eram todas as

instalações prontas e o grande patrimônio que a Leiteria possuía em sua sede na cidade de Araras:

havia uma represa que abastecia através de suas canalizações toda a fábrica, máquinas para a

fabricação de latas para leite condensado, além da fábrica do leite condensado em si, máquinas para

a fabricação de manteiga, entre outras e, além delas, uma vasta quantidade de terras no entorno da

Leiteria.

Desta maneira, a Nestlé que nos idos de 1900 tinha apenas um escritório de representação na

cidade do Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, a 23 de dezembro de 1920, pelo decreto

Presidencial nº 14.567, recebeu autorização para funcionar no Brasil. O primeiro produto feito no

município de Araras foi o Milkmaid, leite condensado já consagrado no mercado, que no Brasil,

teve seu nome mudado para Leite Moça.

6 Conclusão

Em que pese toda a polêmica que foi travada sobre o início das indústrias no Brasil, no

começo do século XX, o objetivo do texto foi abordar como era possível a uma pessoa detentora do

chamado “espírito empreendedor”, pôr em prática suas idéias e conseguir transformá-las em

realidade. Nosso personagem, o francês Louiz Nougués, deu uma boa noção daquilo que era

necessário fazer no início do século passado para tornar-se um empresário e posteriormente, um

industrial.

A Companhia Ararense de Leiteria, fundada em 1909, sob a razão social de Lacerda, Soares

& Nougués, foi obra do sonho de Nougués, mas deve ser compreendida, também sobre a luz do

grande capital cafeeiro. Este, cada vez mais se aventurando em novas áreas, em busca de diminuir

seus custos de manutenção e oportunidades lucrativas de investimento, foi se metamorfoseando em

capital industrial, não só nos momentos de crise do setor cafeeiro e, dando origem à burguesia

industrial paulista. Os fazendeiros que Nougués procurou para fomentar sua empresa, João de

Lacerda Soares, João Soares do Amaral e José de Souza Queiroz, ilustravam bem esse tipo de

“capitalista” que viabilizava a implantação de novas indústrias.

Com o crescimento da Leiteria, novos sócios adentraram na Companhia na busca de

dividendos. Esta ascensão pode também ser creditada à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), pois

o conflito prejudicou a importação de diversos produtos que abasteciam o mercado brasileiro,

inclusive o leite condensado, que a Leiteria produzia no Brasil. O fato é que houve uma expansão,

denotada pelas operações de aumento do capital da empresa, e que a Lacerda, Soares & Nouguês

estava fortalecida no pós-guerra.

Contudo, parece que o montante ganho por aqueles que representavam a empresa, João de

Lacerda Soares e Louiz Nougués possuíam a maior parte das ações, aliado às incertezas do

mercado, às dificuldades em concorrer com um poderoso rival e à possibilidade de lucrar ainda

mais com uma ótima oferta feita pela multinacional suíça, fizeram com que se concretizasse a venda

da Companhia Ararense de Leiteria à Nestlé and Anglo-Swiss Condensed Milk Co., no dia 22 de

janeiro de 1921, data do registro em cartório.

O saldo há de ser positivo quando pensarmos em Nougués e na Companhia Ararense de

Leiteria. Ele que tinha apenas uma boa idéia nas mãos, conseguiu transformá-la numa grande

indústria que atraiu novos e fortes investidores, gerou dividendos e pode ser considerada a

precursora de uma multinacional alimentícia no Brasil, a maior do mundo, que até hoje ocupa a

mesma planta que adquiriu da Leiteria – a Nestlé Araras apenas ampliou o espaço, mas ainda é

possível notar os traços da primeira fábrica da Leiteria. Texto de Gustavo Pereira da Silva e Armando Dalla Costa.

Nota do blog: Data e autoria da imagem não obtidas.


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